Tratamento à Dependência de Álcool e Drogas – Estudo
Tratamento à dependência de álcool e drogas é considerada um problema de saúde pública que vem crescendo na sociedade atual e suas diversas formas de tratamento à dependência.
Observa-se que os usuários de drogas, incluindo, de álcool e crack, possuem altos índices de recaídas, sendo a motivação um dos fatores importantes para o sucesso do tratamento à dependência de álcool e drogas. Nesse sentido, esta pesquisa teve como objetivo principal identificar os estágios de motivação para a mudança em usuários de álcool e crack institucionalizados. Foi realizada com 200 dependentes químicos, internados para tratamento em uma instituição hospitalar e em uma fazenda de recuperação. Como instrumentos, foram utilizados um questionário sociodemográfico e a escala URICA. Os dados foram submetidos a análises estatísticas descritivas e inferenciais por meio do software SPSS. Verificou-se que a maioria dos participantes encontra-se no estágio de contemplação, em que a pessoa admite ter um problema e considera possibilidades de mudança, demonstrando preocupação e uma clara avaliação entre as vantagens e as desvantagens de mudar. Quanto ao local de internamento, os usuários que se tratam em fazendas de recuperação mostraram-se mais motivados. Espera-se que estes dados possam auxiliar as instituições na elaboração de estratégias que fortaleçam a motivação para a mudança e as condições de tratamento da dependência química.
Tratamento à Dependência de Álcool e Drogas – Fundamentação Teórica
Atualmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera o uso abusivo de drogas como uma doença crônica e recorrente. Para esta instituição, o uso de drogas constitui um problema de saúde pública, que vêm ultrapassando todas as fronteiras sociais, emocionais, políticas e nacionais, preocupando toda a sociedade (Andretta & Oliveira, 2011).
Segundo dados do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid, 2010), muitos são os fatores que podem motivar o uso de drogas, como: a busca de prazer, amenizar a ansiedade, tensão, medos e até aliviar dores físicas. Quando a utilização dessas substâncias se dá de forma abusiva e repetitiva, sem que haja um controle do consumo, frequentemente instala-se a dependência (Crauss & Abaid, 2012).
De acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID-10), a dependência química caracteriza-se pela presença de um agrupamento de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos, indicando que o indivíduo continua utilizando uma substância, apesar de problemas significativos relacionados a ela. Como acrescentam Kaplan, Sadock e Grebb (2007), o indivíduo dependente prioriza o uso da droga em detrimento de outras atividades e obrigações.
Em virtude de ser um problema bastante complexo, no qual estão envolvidas várias dimensões, deve-se entender a dependência química como sendo uma doença biopsicossocial.
Em função disso, os modelos de tratamento necessitam de tipos de intervenções, que incluam diversas estratégias de abordagem do problema, considerando elementos biológicos, psicológicos e sociais (Kaplan et al., 2007).
Tais estratégias devem levar em conta ainda dois agravantes, a baixa adesão e a falta de motivação para o tratamento, os quais acarretam frequentes recaídas. Segundo Magrinelli e Oliveira (2006), é consenso na literatura mundial o alto índice de recaídas dos indivíduos dependentes, independentemente da modalidade e do número de tratamentos a que eles se submetem ao longo de suas vidas. Nesse sentido, a motivação mostra-se um fator de relevância em relação à adesão ao tratamento.
Para Figlie, Dunn e Laranjeira (2004), a motivação é vista como um estado de prontidão ou avidez para a mudança, que pode flutuar de um momento (ou situação) para outro e pode ser entendido como uma condição interna influenciada por fatores externos. Bittencourt (2009) acrescenta que a motivação pode ser conceituada como alguma coisa que faz uma pessoa agir, ou o processo de estimular uma pessoa a agir. Uma das teorias que mais tem contribuído para a compreensão da motivação para o tratamento é a do Modelo Transteórico de Mudança de Comportamento (Transtheoretical Model of Change), desenvolvido por James Prochaska e colaboradores nos anos 1970 (Szupszynski & Oliveira, 2008).
De acordo com Bittencourt (2009), este modelo considera a prontidão para a mudança como um processo através do qual o indivíduo transita em quatro estágios bem definidos: Pré-contemplação, Contemplação, Ação e Manutenção. O primeiro é um estágio em que não há intenção de mudança, nem mesmo uma crítica a respeito do conflito envolvendo o comportamento-problema. É como se o sujeito estivesse usando a negação como mecanismo de defesa, sendo a existência do problema completamente recusada. A Contemplação é o estágio em que o indivíduo parece estar se conscientizando de que existe um problema, no entanto há uma ambivalência quanto à perspectiva de mudança. O estágio da Ação ocorre quando a pessoa inicia explicitamente a modificação de seu comportamento-problema, escolhendo uma estratégia para a realização desta mudança, tomando atitudes com este objetivo. A ação é um período que exige muita dedicação e energia pessoal e as mudanças realizadas nesse estágio são muito mais visíveis do que as realizadas durante outros estágios.
Finalmente, a Manutenção é o estágio que constitui o grande desafio no processo de mudança. A estabilização do comportamento em foco é a marca deste estágio. É necessário um esforço constante do indivíduo para consolidar os ganhos conquistados nos outros estágios, principalmente no estágio de ação, além de um esforço contínuo para prevenir possíveis lapsos e recaídas. A mudança nunca é concretizada com a ação. Sem um forte compromisso no estágio de manutenção, a pessoa poderá ter recaídas, mais comumente encontradas nos estágios de pré-contemplação e contemplação (Bittencourt, 2009).
Adverte-se, entretanto, que nem sempre um indivíduo que busca tratamento encontra-se no estágio de Ação. Uma pessoa que se interna em uma unidade para o tratamento da dependência química, mas não se engaja no programa da instituição, não reconhece os problemas oriundos do abuso das substâncias, ou mostra-se ambivalente quanto a manter ou interromper o uso, pode estar mostrando evidências de que se encontra em algum outro estágio que não o de Ação. Por outro lado, o estágio de Manutenção pode e deve ser estimulado por toda a vida, mantendo os ganhos e evitando as recaídas. Trata-se de uma fase difícil, mas crucial no tratamento á dependência de álcool e drogas (Oliveira, Laranjeira, Araújo, Camilo, & Schneider, 2003).
Com base no Modelo Transteórico de Mudança de Comportamento, foi desenvolvido um instrumento denominado University of Rhode Island Change Assessment Scale (URICA): escala desenvolvida por McConnaughy, Prochaska e Velicer (1983), da Universidade de Rhode Island (EUA), que tem por objetivo avaliar a motivação para a mudança que o sujeito apresenta no momento da sua administração. É uma escala que busca avaliar os estágios motivacionais dos indivíduos e o quanto eles estão disponíveis para uma mudança em seus comportamentos-problema. O resultado final desta escala mostra a quantidade de pontos feitos em cada um dos estágios de mudança, como também se há um predomínio significativo em algum deles. O cálculo da prontidão para a mudança baseia-se no somatório dos escores médios de contemplação, ação e manutenção, subtraído do escore médio de pré-contemplação. É constituída por 32 itens (afirmações), divididos em quatro subescalas de oito itens cada uma, que indicam os estágios motivacionais denominados: pré-contemplação, contemplação, ação e manutenção. O sujeito deve considerar o quanto está ou não de acordo com cada uma das afirmações, pontuando de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente) em uma escala de tipo Likert. É importante lembrar que, em função da dinamicidade atribuída aos estágios motivacionais, cada sujeito obterá pontuação (mínima de oito pontos e máxima de 40 pontos) em cada uma das subescalas, sendo possível identificar os estágios que estão predominando no momento da investigação.
Identificar precisamente o estágio de motivação para a mudança, no qual o usuário em recuperação se encontra, pode ser uma parte decisiva no processo de avaliação, posto que possibilita a aplicação de estratégias certas na hora certa. Ademais, a escala URICA pode auxiliar no monitoramento da evolução do tratamento (Gonçalves, 2008). Castro e Passos (2005) concluem que as teorias motivacionais vêm sendo regularmente estudadas desde a última década, permitindo uma avaliação pragmática de seus parâmetros, por meio de escalas com validade e confiabilidade que variam de boa a excelente.
Diante do exposto, este estudo teve como objetivo principal identificar o estágio de motivação para a mudança em usuários de álcool e crack institucionalizados. Além disso, procurou relacionar os estágios de motivação a variáveis sociodemográficas e verificar se há diferença no nível de motivação em relação ao tipo de droga e ao local de internamento.
Espera-se que os resultados encontrados possam auxiliar os profissionais de saúde e os órgãos competentes na ampliação dos conhecimentos sobre a motivação para a mudança em indivíduos drogaditos. A expectativa é que o acesso ao estágio de prontidão para a mudança sirva para a melhoria e adequação de intervenções terapêuticas, estratégias e abordagens de tratamento da dependência química.
Método
Trata-se de um estudo não experimental, descritivo, de cunho quantitativo, realizado em duas instituições de tratamento à dependência química (Hospital Psiquiátrico e Fazenda de Recuperação). Participaram 200 dependentes químicos em tratamento, do sexo masculino, sendo 127 internados por causa do uso de crack e 73 por causa do uso de álcool. Em relação ao local de internamento, 150 pertenciam ao Hospital e 50 à Fazenda. A amostra foi de conveniência e não probabilística. Como critério de inclusão, foram utilizados dependentes químicos (álcool e\ou crack: CID10 F10 e\ou F19) em tratamento e maiores de 18 anos. Como critério de exclusão, foram desconsiderados os dependentes de drogas que apresentavam comorbidade psiquiátrica.
Para a coleta de dados utilizou-se o questionário URICA (University of Rhode Island Change Assessment Scale), o qual é composto por 32 perguntas, divididas em quatro subescalas, que abrangem os seguintes estágios de mudança comportamental: pré-contemplação, contemplação, ação e manutenção (Szupszynski & Oliveira, 2008). Esta escala foi desenvolvida por McConnaughy et al. (1983) e validada no Brasil por Figlie (1999).
A análise do protocolo foi realizada segundo critérios propostos por The Habits Lab at UMBC. Inicialmente foi somada a pontuação das afirmações de cada estágio de mudança separadamente e dividiu-se por sete. Itens dos fatores: pré-contemplação -1,5,11,13,23,26,29,31; contemplação -2,4,8,12,15,19,21,24; ação -3,7, 10,14,17,20,25,30 e manutenção -6,9,16,18,22, 27,28,32. Posteriormente, o resultado dos estágios de contemplação (C), ação (A) e manutenção (M) foram somados e desta soma foi subtraído o resultado do estágio de pré-contemplação (PC), como na fórmula C + A + M – PC = Escore de Prontidão, para encontrar o escore para cada estágio de mudança. Se o cálculo resultante desta fórmula for menor ou igual a 8,9 o paciente encontra-se no estágio de pré-contemplação, de 9 a 11,9 na contemplação, de 12 a 14,9 na ação e igual ou maior que 15 na manutenção. Além disso, foram coletados dados acerca do perfil sociodemográfico, os quais serviram para a caracterização da amostra.
Foram resguardados todos os cuidados éticos que envolvem a pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996). A pesquisa recebeu a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Lauro Wanderley, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sob o protocolo CEP/HULW nº 214/10.
Inicialmente, foram realizadas visitas às instituições, com o objetivo de apresentar a proposta de pesquisa aos seus gestores. Após a autorização, iniciaram-se os procedimentos de coleta de informações. Para tanto, foi estabelecido um rapport, no qual o pesquisador esclareceu acerca da pesquisa e a participação ocorreu de forma voluntária, mediante a assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Em seguida, o instrumento foi aplicado no ambiente institucional, em local determinado pelos dirigentes, de forma individual e garantindo a privacidade de cada participante.
Os dados da escala URICA e os sociodemográficos foram processados pelo Pacote Estatístico para as Ciências Sociais (SPSS) para Windows-versão 15.0. Foram utilizados frequências e percentuais para descrever a amostra estudada, a partir das variáveis: tipo de droga, local de internamento, início do uso de drogas, idade, escolaridade, estado civil, trabalho, religião, número de internamentos e estágios de motivação.
Em seguida efetuou-se o teste Kolmogorov-Smirnov, para testar a normalidade das variáveis pré-contemplação, contemplação, ação e manutenção, dentro de cada nível das variáveis: tipo de droga, local de internamento, trabalho, estado civil e religião. Observada a normalidade das variáveis referentes ao URICA, efetuou-se o teste t para amostras independentes para contrastar as variáveis dicotômicas: tipo de droga, local de internamento e trabalho, quanto às variáveis constituintes do URICA. Com a mesma variável dependente, realizou-se o teste de Análise de Variância (ANOVA), utilizando-se como variá-veis independentes o estado civil e a religião. Para testar a relação entre as variáveis de motivação e a idade, escolaridade, início do uso de drogas e número de internamentos, efetuou-se a correlação de Spearman. Para este último teste, os dados foram divididos a partir da variável tipo de droga.
Resultados e Discussão
Em relação aos dados sociodemográficos, observou-se que a maior parcela, 33% (n=66), foi de uma faixa etária jovem, com idades entre 29 e 39 anos. Verificou-se também uma baixa escolaridade, de modo que 56% (n=112) da amostra investigada era analfabeta ou possuía até o ensino fundamental. Em 57% (n=114) dos participantes, o começo do uso de drogas aconteceu na adolescência e 46% (n=91) já se encontravam entre o segundo e quinto internamento. Em relação ao estado civil, 63% (n=125) eram solteiros e 72% (n=143) afirmaram trabalhar. No que diz respeito à religião, 61% (n=121) dos sujeitos eram católicos.
Estes resultados estão de acordo com outros estudos, os quais também descrevem uma amostra de dependentes químicos composta, na sua maioria, por jovens com baixo nível de escolaridade e com muitos internamentos (Chaves, Sanchez, Ribeiro, & Nappo, 2011; Guimarães, Santos, Freitas, & Araújo, 2008; Oliveira & Nappo, 2008).
Ao relacionar as variáveis sociodemográficas (faixa etária, escolaridade, idade de início do uso de drogas, número de internamentos, trabalho, estado civil e religião) com os estágios da motivação para a mudança não se verificou associação significativa. Quanto à motivação para a mudança, buscou-se verificar em que estágio os participantes deste estudo se encontravam, e, por conseguinte, o quanto estavam disponíveis para uma mudança em seu comportamento-problema. Os resultados podem ser visualizados na Tabela 1.
Verificou-se que a maioria dos participantes encontrava-se no estágio de contemplação. Este resultado também foi encontrado no estudo realizado por Resende, Amaral, Bandeira, Gomide e Andrade (2005), com alcoolistas hospitalizados.
De acordo com Gonçalves (2008), no estágio de contemplação a pessoa admite ter um problema e considera possibilidades de mudança, mostrando preocupação e uma clara avaliação entre as vantagens e as desvantagens de mudar. Neste estágio, os indivíduos podem pensar sobre as implicações que seu comportamento-problema traz para si e para os que estão à sua volta, debatendo-se entre as avaliações positivas do comportamento e o montante de esforços, energias e perdas que lhe demandará a superação do problema. Contudo, apesar desse movimento em direção à mudança, os contempladores possuem, como principal característica, a ambivalência.
Para Andretta e Oliveira (2011), a ambivalência pode ser entendida como o conflito existente entre mudar e permanecer no comportamento atual. Bittencourt (2009) ressalta que o conflito básico da ambivalência – “quero, mas não quero” – possui papel central nos comportamentos de dependência. Tanto drogaditos quanto alcoolistas, comedores compulsivos ou jogadores patológicos, até reconhecem os malefícios de seus comportamentos, entretanto, continuam atraídos pelo objeto de dependência.
O estágio de contemplação, predominante no presente estudo, pode explicar o alto número de internamentos, os quais sugerem uma grande quantidade de recaídas. Büchele, Marcatti e Rabelo (2004) destacam que a dependência química é um transtorno crônico que, pela própria natureza, apresenta tendências a episódios de recaída. Esses episódios de retorno ao uso de drogas ocorrem, principalmente, devido às dificuldades em administrar as barreiras que surgem na jornada de um dependente em recuperação.
Segundo Gonçalves (2008), apesar de não ser considerada como um estágio motivacional, a recaída pode ser encarada como um estado de transição, já que quase sempre faz parte do processo de mudança de comportamentos. Bittencourt (2009) ressalta que o processo de mudança não é meramente linear. Seus estágios podem ser compreendidos como uma “espiral”, em que a pessoa pode transitar de um estágio para outro sem uma ordem estabelecida. Neste sentido, se o indivíduo recair, não significa que ele irá retornar para o início do seu processo de mudança.
Orsi e Oliveira (2006) afirmam que é relevante conhecer dados como estes, acerca dos estágios motivacionais dos pacientes, para que as instituições de tratamento à dependência possam elaborar estratégias de terapêuticas adequadas. Tais estratégias devem ser focadas, primeiramente, nos pacientes que estão predominantemente no estágio de ação (como é de se esperar de indivíduos em tratamento). Mas devem contemplar também aqueles que, embora em tratamento, ainda não têm claro para si as razões para modificar o seu comportamento, isto é, que ainda estão na fase da pré-contemplação e contemplação, como os participantes do presente estudo. Assim, reconhecer o estágio motivacional em que o indivíduo se encontra pode auxiliar na forma de tratamento aplicada, visando à obtenção de resultados mais eficazes.
A Tabela 2 traz a comparação entre os dois tipos de internos usuários (crack e álcool), quanto aos níveis de motivação (pré-contemplação, geral, mais motivados que os usuários de álcocontemplação, ação e manutenção). Como mos-ol, para o enfrentamento do problema pelo qual tram os dados, os usuários de crack estavam, em estavam acometidos, com exceção do nível de contemplação.
Os resultados do estudo realizado por Oliveira et al. (2003) mostraram uma correlação positiva entre maior gravidade da dependência química e motivação para a mudança. Ou seja, por experienciarem maiores prejuízos, tanto clínicos quanto psicossociais, os indivíduos com dependência química mais grave apresentavam maior prontidão para a mudança.
Desta forma, pode-se inferir que os usuários de crack desta pesquisa apresentaram maiores pontuações na escala de motivação pelo fato de terem vivenciado prejuízos mais intensos nos diversos âmbitos de suas vidas. Provavelmente, esses prejuízos ocorreram tanto nos aspectos psicobiológicos, em virtude dos efeitos do crack no organismo, quanto nos aspectos interpessoais e sociais, posto que essa droga é atrelada à ilegalidade. De acordo com Kessler e Pechansky (2008), o crack é uma droga que possui um enorme poder de devastação e causa prejuízos mais rápidos e intensos que o álcool.
De acordo com Oliveira et al. (2003), este achado é relevante por ir de encontro à visão de muitos profissionais de saúde e dependentes químicos, que consideram que quem tem um grau mais severo de dependência é mais difícil de ser tratado e possui um pior prognóstico. Tal percepção pode interferir na atuação desses profissionais e na motivação desses dependentes químicos na busca por tratamentos mais efetivos.
Os resultados da presente pesquisa estão em conformidade com o estudo de Rigoni, Oliveira, Susin, Sayago e Feldens (2009), feito com alcoolistas internos em um serviço especializado em tratamento para dependência química. Os autores verificaram que a maior parte da amostra apresentou uma baixa motivação para a mudança.
Este fato pode ser explicado por alguns fatores. Primeiramente, em virtude de se desenvol-ver mais lentamente, a dependência de álcool faz com que haja uma dificuldade em se saber quando o indivíduo deixou de ser um “bebedor social” para se tornar um dependente. Isto facilita a negação, por parte do sujeito, de que realmente precisa mudar de atitude. Em segundo lugar, o álcool é uma droga amplamente aceita socialmente e que tem o seu uso incentivado, o que também dificulta a motivação do sujeito para a mudança.
Além destes aspectos, existem sérias comorbidades psiquiátricas que coexistem com a dependência de drogas, como é o caso da ansiedade e da depressão, que também dificultam a proposição de um alto nível de motivação. Estas comorbidades se relacionam com o desenvolvimento e com as consequências da dependência de drogas, como apontam Silva e Quintas (2010).
Com a indicação de que existe uma diferença significativa entre os internos usuários de crack e de álcool, quanto à motivação, os demais testes foram realizados separadamente, para cada um dos tipos de usuários. Deste modo, con-ração ou hospitais psiquiátricos). Os resultados trastou-se a motivação dos internos em função obtidos nos testes t, entre usuários de crack e de do local de internamento (fazendas de recupe-álcool, indicaram que os internos em fazendas eram mais motivados (Tabela 3).
A diferença encontrada entre os níveis de motivação dos internos em hospitais e dos internos em fazendas de recuperação pode ser explicada, além de outras razões, pelos diferentes tratamentos oferecidos nas duas instituições. O funcionamento dos hospitais psiquiátricos herdou uma compreensão de trabalho associada à dominação, que era característica da era industrial. Nesse sentido, o paciente de hospital tende a assumir um papel passivo diante do seu tratamento, pois o médico é visto como quem tem o poder incontestável de receitar o que achar necessário (Moraes, 2008).
Além disso, em uma Avaliação das Ações de Atenção à Saúde Mental, executada em 2005, foram relatadas as condições precárias oferecidas pelos hospitais psiquiátricos conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com a avaliação, estes hospitais apresentaram instalações físicas desgastadas e a inexistência de um projeto terapêutico que fosse além da utilização de medicamentos (Tribunal de Contas da União, 2005).
Por outro lado, as fazendas de recuperação funcionam regidas por disciplina, trabalho e espiritualidade, como recursos terapêuticos dentro de uma vida comunitária. Propõem-se a educar os internos sobre a dimensão espiritual, emocional, física, mental e social. Além de não fazerem uso de medicação, estas instituições fornecem uma assistência que vem de profissionais voluntários, que podem ser ou não ex-dependentes químicos (Queiroz, 2001).
A partir de um estudo de caso realizado numa fazenda de recuperação, Moraes et al. (2010) concluíram que, nesse tipo de instituição, existem espaços para o convívio entre os internos, para práticas laborais e práticas espirituais. Todos assumem responsabilidades dentro da fazenda, auxiliando desde a administração da comunidade, até as diversas outras atividades.
Nas fazendas de recuperação, os dependentes químicos tanto trabalham como realizam atividades domésticas, diferentemente do que ocorre nos hospitais, onde passam a maior parte do tempo sem ocupações, por falta de projetos terapêuticos. Observa-se, então, que o “fazer” proposto pelo tratamento alternativo das fazendas torna-se um meio de se construir uma mudança nos indivíduos (Queiroz, 2001).
Assim, percebe-se um contraste entre as duas instituições, uma vez que o hospital psiquiátrico fornece um tratamento à dependência com base no modelo biomédico de saúde, priorizando o âmbito biológico do indivíduo. Por outro lado, as fazendas de recuperação apresentam uma concepção mais holística, numa perspectiva de contemplar o ser humano em sua totalidade. A partir dos resultados do presente estudo, pode-se inferir que esta forma mais humanizada de conceber o tratamento da dependência química favorece um nível mais elevado de motivação para a mudança.
Considerações Finais
Este estudo teve como objetivo principal identificar o nível de motivação para o tratamento em dependentes químicos institucionalizados. Verificou-se que a maioria dos participantes se encontra no estágio de contemplação, enquanto os que estão em recuperação, por causa do uso do crack, apresentam maior motivação para a mudança, quando comparados com os indivíduos dependentes de álcool. Constatou-se ainda que os indivíduos que estão em tratamento em fazendas de recuperação se encontram mais motivados do que os que se recuperam em hospitais psiquiátricos.
Evidencia-se a importância da utilização de técnicas terapêuticas que auxiliem esses pacientes na diminuição da ambivalência, isto é, do conflito entre mudar e permanecer no comportamento atual. As técnicas terapêuticas poderão ajudar os pacientes a progredir em direção aos estágios de ação e de manutenção, uma vez que eles estão em evolução e já discriminam uma possibilidade de mudança.
Os resultados do presente estudo apontam para o desafio de descobrir formas e estratégias para fortalecer a motivação para a mudança em dependentes químicos. Em conformidade com isto, os dados reafirmam a necessidade de abordagens de tratamento que contemplem o indivíduo como um ser multifacetado. É preciso destacar, entretanto, que esta pesquisa não pretende generalizar seus resultados para toda a população de dependentes químicos em recuperação. A ausência de controle de variáveis e a não randomização dos participantes também não permitem atribuir poder causal às diferenças evidenciadas para as variáveis: tipo de droga e local de internamento.
Além disso, os resultados encontrados fazem parte de um recorte temporal específico, uma vez que os estágios motivacionais são dinâmicos e suscetíveis à mudança. Sugere-se, pois, a realização de outros estudos, com outros tipos de delineamento, utilizando amostras mais representativas e procurando identificar os estágios motivacionais preponderantes. Tais providências por certo proporcionarão análises mais amplas, acerca do tratamento e dos fatores influentes na motivação e na recuperação dos dependentes químicos em tratamento.